Abuso, abandono e moscas: a luta de Jamile e Mateus para sobreviver
Jamile, que não sabe a própria idade com certeza, luta para criar o filho, Mateus, em uma rotina de descaso do poder público e desesperança
atualizado
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Trairi (CE) – Trairi é uma cidade do Ceará com quase 57 mil habitantes. Fica a duas horas e meia de Fortaleza, próxima de Jericoacoara, point badalado do turismo milionário do Ceará, com diárias em hotéis que chegam a R$ 2 mil. Trairi também tem praias, mas o que chama a atenção na cidade são as turbinas de energia eólica espalhados por todo o território do município. São equipamentos de empresas internacionais, cujo investimento chega a bilhões de reais.
As turbinas são vistas através da vegetação, das praias e do centro da cidade. Trairi deveria ser uma cidade rica, inteligente e cheia de oportunidades profissionais, graças ao turismo e aos investimentos em tecnologias sustentáveis. Não é.
O IDH de Trairi é de 0,606, indicador considerado de médio desenvolvimento, mas isso não fica visível ao circular em vias rurais e locais como a Comunidade de Flecheiras. É lá que se desenrola a história de Jamile, uma menina com problemas mentais que a comunidade apelidou de Onça, graças ao seu comportamento violento e desconfiado. É a história de uma realidade tão trágica quanto, infelizmente, rotineira entre os despossuídos que se espalham pelo país.
Tem abuso, descaso, luta incessante pelos mais limitados padrões de sobrevivência. E moscas.
Quando se chega à casa de Jamile, ela recebe o visitante com um sorriso e um abraço tímido. A menina chamada de Onça que se apresenta é diferente do que a comunidade insiste em contar.
Me apresento e pergunto quantos anos ela tem. Jamile não sabe dizer. A mãe da menina também não sabe a idade da filha. Uma certidão de nascimento recente mostra que Jamile tem 19 anos, mas a própria família não consegue garantir que seja essa a idade real da menina. Algumas pessoas acreditam que Jamile tenha 14 anos, outras falam em 16.
Ela tem um filho chamado Mateus. A criança, de 3 anos, vive na casa com a mãe, a avó, Maria Erenilce Conceição, três irmãos e o padrasto de Jamille. Quando Jamile engravidou pela primeira vez, o padrasto a expulsou de casa com o consentimento da mãe.
Ela morou por dois dias na rua, até que vizinhos a acolheram. Flecheiras é comandada por facções criminosas, que souberam da situação da menina e intervieram. O padrasto de Jamile recebeu um ultimato: se algo acontecesse à menina, ele morreria. A facção mandou que o homem entregasse a casa para a menina. Agora, ela não pode mais ser expulsa.
A menina não consegue dizer quem é o pai de Mateus. Está novamente grávida, mas não sabe de quantos meses, pois não está fazendo o pré-natal.
Três anos
Mateus aparece logo depois para se agarrar em suas pernas. É uma criança tímida e triste. Usa apenas uma cueca. Tem várias feridas espalhadas pelo corpo. Nelas, pousam moscas – que não são afastadas. A imagem é chocante. Mateus está coberto por saliva. Ele se senta no chão ao lado de Jamile, urina e fica sentado na poça.
O menino tem o rosto inchado por um corte na parte externa da bochecha, outro corte inflamado na orelha e frieiras nos pés. A criança sente dor e baba muito.
Mateus está em estado de desnutrição crônica, anêmico, ictérico e com a barriga inchada pelo quadro de verminoses. Passado o choque, entramos em contato com um farmacêutico, que traz remédios e pomada para poder tratar de forma superficial as feridas da criança e as verminoses. Pedimos que Jamile dê um banho em Mateus, mas ela fica receosa de gastar a água da bica. O padrasto está em casa, e ela tem medo dele, mesmo depois da ação das facções criminosas.
Ao entrar na comunidade, logo se vê, em vários pontos, as pichações que demarcam território de controle do crime no bairro. O crime organizado de Trairi não perdoa os homens que batem ou estupram mulheres. A sentença é a morte.
Promessa de atendimento
A assistente social de Flecheiras, Viana Viane, foi procurada e disse que agirá para tentar melhorar a situação da família – ao menos, garantir atendimento mínimo para as necessidades de Jamile e Mateus.
“Nós vamos encaminhar a Jamile para o pronto-socorro de Flecheiras para os exames de gravidez, e Mateus também será encaminhado para atendimento. Ontem [quinta-feira, 31/3), a enfermeira foi lá, mas não encontrou a Jamile. A enfermeira encontrou a mãe dela na rua e nós combinamos com dona Preta (a mãe de Jamile) para segunda de manhã, mas caso eles não estejam em casa e faltem nos exames então a gente vai se informar com a enfermeira do pronto-socorro, porque aí vai ser feita uma busca. Se essa família continuar nessa situação, vão ser tomadas medidas.”
Depois de ser pressionada nas redes sociais, a prefeitura da cidade enviou equipes do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) à casa da família. Agora, a promessa é de que Jamile e Mateus serão encaminhados para o Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e o menino receberá tratamento médico.
Mas Jamile e Mateus não estão fora de risco. Nem perto disso. A burocracia do poder público faz o atendimento demorar. Enquanto não é encaminhada para tratamento, Jamile continua morando na mesma casa. Na mesma realidade, com os mesmos personagens, com a mesma desesperança.