A poética da nova onda rosa na América do Sul (por Marcos Magalhães)
A nova onda rosa não nasce de “grandes levantes ou de ações coletivas”. Ao contrário, tem como protagonistas governantes moderados
atualizado
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A nova onda rosa, que chega à América do Sul a partir do Oceano Pacífico, ainda não mostrou se será capaz de cruzar os Andes e se espalhar pelos oito milhões de quilômetros quadrados da maior potência regional. Mas já multiplicou comparações àquela que a antecedeu, no início do século.
As eleições de Gustavo Petro, na Colômbia, e de Gabriel Boric, no Chile, tiveram duplo impacto na região. De um lado, alimentaram esperanças de um giro conjugado à esquerda, especialmente no Brasil. De outro, motivaram suspeitas de que o movimento político não seria tão à esquerda assim.
Petro e Boric, é bom lembrar, são as mais recentes estrelas de uma onda que já havia levado ao poder os atuais presidentes da Argentina, Alberto Fernández, em 2019; da Bolívia, Luis Arce, em 2020; e do Peru, Pedro Castillo, em 2021.
O primeiro a questionar as credenciais da nova safra foi o ex-vice-presidente da Bolívia Álvaro Linera, que acompanhou no poder o então presidente Evo Morales de 2006 a 2019. Para o matemático e sociólogo de tendência marxista, os momentos são bem diferentes.
A nova onda rosa, interpreta, não nasce de “grandes levantes ou de ações coletivas”. Ao contrário, tem como protagonistas governantes moderados, com a “possível exceção” de Petro. Em sua opinião, são “governantes administrativos, menos propensos a grandes mudanças radicais”.
“Isso não é um defeito, mas um sinal dos tempos”, disse Linera em entrevista à Folha de S. Paulo. “Eles tendem a atuar mais como participantes de um sistema político do que como construtores de um novo sistema. Assim, não são portadores de um horizonte de longo prazo”.
Estilos
O estilo, definitivamente, é outro. Não há, entre os integrantes da nova onda, alguém com o carisma de um Hugo Chávez, disposto a liderar um grande movimento político de esquerda em toda a região. Por outro lado, também não há sinais de que algum dos novos presidentes tenha o projeto de levar seus países ao caminho autoritário que veio a ser adotado pela Venezuela.
O atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, nem sequer tem sido mencionado como integrante da nova onda rosa, exatamente por levar seu país a ser visto como uma ditadura.
O mais instável entre os novos presidentes é Castillo, do Peru. Eleito com uma plataforma de esquerda para a economia, ele tem se demonstrado um conservador na pauta de costumes e ainda procura vencer as seguidas tentativas de removê-lo do poder.
Castillo seria o mais próximo de um representante da antiga safra de líderes da esquerda latino-americana. Um professor do interior com discurso quase revolucionário e adepto de grandes mudanças no sistema econômico.
Uma espécie de eco, seis décadas mais tarde, de movimentos guerrilheiros como os que levaram ao poder inicialmente Fidel Castro, em Cuba, e Daniel Ortega, na Nicarágua. Dois países que inspiraram gerações de ativistas de esquerda no continente. E que hoje são vistos como regimes autoritários e anacrônicos.
A poética de homens como Fidel, Ortega e mesmo Che Guevara vinha envolvida em uniformes militares, metralhadoras e promessas de justiça. O recurso às armas fazia parte de um cenário quase romântico de construção de um novo modelo de vida.
Guerrilha
Em poucos países da região, a guerrilha se prolongou de tal forma no tempo como a Colômbia. Apesar de contar com um regime democrático, marcado até agora por sucessivas gestões conservadoras, o país até hoje convive com movimentos guerrilheiros, como o Exército da Libertação Nacional (ELN).
Após a eleição do primeiro presidente de esquerda no país, o ELN manifestou a disposição de reiniciar negociações de paz. Caso as negociações tenham sucesso, ficarão no passado pelo menos seis décadas de uma guerrilha que radicalizou gerações de colombianos.
O mais curioso é que um possível acordo de paz venha a ser firmado justamente por um presidente que participou, ele mesmo, do extinto movimento M-19. E que agora parece disposto a dar um novo tom à poética da esquerda na América do Sul.
“Buscamos a política do amor”, disse Gustavo Petro, em seu discurso de vitória. “Não é uma mudança para nos vingarmos ou para construir mais ódios, não é uma mudança para aprofundar o sectarismo na sociedade colombiana. Nossos país e avôs nos ensinaram o que significa o ódio na história da Colômbia”.
Ao seu lado, na praça pública onde ocorreu a comemoração, estava a advogada negra e ativista ambiental Francia Márquez, de apenas 40 anos, eleita vice-presidente do país. Ela trouxe sua própria contribuição à construção dessa nova poética da esquerda regional, ao mencionar questões de gênero, raça e meio ambiente.
“Vamos com os direitos de nossa Mãe Terra, a cuidar de nossa casa grande, da biodiversidade”, defendeu Francia em seu discurso. “Vamos, juntos, erradicar o racismo estrutural”.
Obstáculos
As palavras de Petro e Francia estão a anos de distância daquelas da antiga esquerda regional. E parecem séculos à frente de palavras usadas em discursos presidenciais nos últimos três anos do lado de cá da fronteira – perto da qual ocorreram há poucas semanas os assassinatos do indigenista Bruno de Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips.
O tempo dirá se as boas intenções anunciadas pela dupla que vai dirigir a Colômbia serão suficientes para pacificar o país e levá-lo a um modelo de desenvolvimento sustentável e inclusivo. A comunidade de negócios do país acompanha os movimentos com apreensão.
Um pouco mais ao sul, o presidente chileno Gabriel Boric – o mais jovem expoente da nova onda rosa sul-americana, com apenas 36 anos – tem experimentado queda de popularidade poucos meses depois de uma cerimônia de posse marcada igualmente por um discurso de reconciliação, especialmente depois dos conflitos sociais de 2019.
“Precisamos reparar as feridas que ficaram da explosão social”, afirmou. “Vamos trabalhar pelo reencontro dos chilenos”, prometeu.
De lá para cá, Boric tem seu reunido com empresários nacionais e estrangeiros, em busca de investimentos, e ainda tem pela frente um delicado plebiscito sobre a nova Constituição, ainda em elaboração, mas já bastante polêmica.
Os ventos não serão fáceis para os líderes da nova onda rosa da América do Sul. A economia não dará a eles as vantagens experimentadas por seus antecessores no início do século. A seu favor, parece estar a adoção de valores em sintonia com seu tempo, como o respeito à democracia, aos direitos das mulheres e das minorias e a proteção ao meio ambiente. Todos ingredientes de uma nova poética da esquerda regional.
Marcos Magalhães escreve no Capital Político. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.