A impunidade ganha um nome (por Sérgio Vaz)
Toffolizar: Inocentar corruptos; abençoar tenebrosas transações contra o patrimônio público
atualizado
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Toffolizar: Inocentar corruptos; abençoar tenebrosas transações contra o patrimônio público.
José Antonio Dias Toffoli não teve a alegria de ver seu nome entre os aprovados em nenhum dos dois concursos de ingresso na magistratura do Estado de São Paulo a que se submeteu – mas fez por merecer um título muito mais difícil, o de ter seu nome transformado em nova palavra do idioma.
Os casos são pouquíssimos, de se contar nos dedos das mãos. Assim, sem uma pesquisa longa, detida, me lembro de apenas três pessoas: King Camp Gillette (1835-1932), Humphrey Bogart (1899-1957) e Paulo Salim Maluf (1931-vivinho da silva telles).
King Camp Gillette, obviamente, foi o cara que inventou a lâmina de barbear que passou a ser produzida pela empresa que ele mesmo criou em 1902, The Gillette Company – uma danada de uma lâmina de barbear tão boa que passou a designar todas as lâminas de barbear, de maneira ampla, geral e irrestrita.
Está lá no Aurélio: “Gilete (é). [Do antr. Gillette.] S. f. 1. Nome registrado de determinada lâmina de barbear. 2. P. ext. Qualquer lâmina desse tipo (…).”
Não sei o doutíssimo Caldas Aulete, mas o Aurélio traz até mesmo o significado de gilete na gíria brasileira. Está lá: “Bras., chulo, Indivíduo sexualmente passivo e ativo”.
Claro: que corta dos dois lados. Era assim que se dizia, quando aprendi,na adolescência, essa acepção brasileirissimamente chula do termo. Não sei se hoje em dia, nos tempos do politicamente correto e do LGBTQIAPN+, o termo é maldito, porco-chauvinista, ou se terá passado por um trabalho de ressignificação, como passaram, ao menos para uma parte dos ativistas do LGBTQIAPN+, termos como queer, sapatão e sandalinha
Não creio que o Webster Dictionary registre o verbo “to bogart”. Nem vou consultar minha edição fantástica, em três grandes volumes, do Webster, porque ela é antiga, do tempo em que eu era jovem. No Dictionary of English Language and Culture da Longman, há o verbete “Bogart”, para o ator – mas não há menção ao verbo “to bogart”, usado no título de uma das canções da trilha sonora de Sem Destino/Easy Rider, o antológico, icônico filme sobre a contracultura escrito e interpretado pela dupla Dennis Hopper-Peter Fonda.
A música do grupo The Fraternity of Man se chama “Don’t Bogart Me”, e começa assim: “Don’t bogart that joint, my friend / Pass it over to me. / Don’t bogart that joint, my friend / Pass it over to me. / Roll another one / Just like the other one”.
O excelente, fundamental site Letras (https://www.letras.mus.br/) traduz assim: “Não monopolize esse baseado, meu amigo / Passe isso aqui para mim / Não monopolize esse baseado, meu amigo / Passe isso aqui para mim. / Enrole outro / Exatamente como o anterior”.
Nos seus filmes, Bogey fumava sem parar – tá certo que os caretas, aqueles que só dão câncer e nenhum barato. Mas fumava sem parar, dava longos tragos e não soltava o cigarro de jeito nenhum – e então usar o nome dele como verbo, como sinônimo de monopolizar, foi um maravilhoso achado.
Um maravilhoso achado – mas não há dúvida de que de uso restrito, gíria de maconheiros. Nem de longe tem a abrangência de gilete. Nem sequer de malufar.
Mary e eu checamos: o verbo “malufar” não está no Aurélio – pelo menos na edição que tenho aqui ao meu lado, ao alcance da minha mão. Nem figura no mais novo – e excelente – Dicionário Unesp de Português Contemporâneo. Mas seu uso é amplo, corriqueiro. Eu não malufo, mas, ah, ele malufa, eles malufam, e muito. Lá no Congresso Nacional – mas não só lá – infelizmente, eles malufaram, ainda malufam e, com toda certeza, ainda malufarão muito.
Está no Dicionário informal na internet (https://www.dicionarioinformal.com.br/). “Malufar. O supra-sumo da Lei de Gérson aplicado à gestão pública. Neologismo que significa esperteza, no pior sentido, a malandragem mais descarada, a roubalheira associada ao empreendedorismo do político. É o salvo-conduto para a safadeza.”
Traz um exemplo: “Lalau malufou os cofres públicos.”
E indica sinônimos: “roubar, safadeza, malandragem, escangalhar, dar errado, encobrir, disfarçar, negar, fraudar”.
E então chegamos a Dias Toffoli, o cara que não conseguiu passar no concurso de ingresso na magistratura de São Paulo. Jamais foi sequer juiz substituto em Presidente Prudente, Rosana, Aguaí ou qualquer cidade do interior pequena e/ou distante da Capital, mas foi alçado por Lula diretamente ao Supremo Tribunal Federal.
Dele não se poderia dizer que tinha propriamente “notável saber jurídico”, conforme exigido pela Constituição da República Federativa do Brasil – mas, diacho, o sujeito era bom companheiro. Havia prestado serviços ao Partido dos Trabalhadores durante anos e anos. Foi consultor jurídico na CUT, Central Única dos Trabalhadores de 1993 a 1994, e advogado do PT nas campanhas presidenciais de Lula em 1998, 2002 e 2006 – entre vários outros cargos ligados ao partido.
Como será que os dicionários registrarão o novo verbo surgido a partir do antropônimo Toffoli?
Toffolizar. Verbo intransitivo e também transitivo direto. Inocentar corruptos; autorizar todo e qualquer tipo de corrupção; abençoar tenebrosas transações contra o patrimônio público. P. ext: liberar geral.
Sérgio Vaz é jornalista (ex-Estadão, estado.com.br, Agência Estado,revistas Marie Claire e Afinal, Jornal da Tarde). Edita os sites + de 50 Anos de Filmes e + de 50 Anos de Textos.