A vida depois de… Deixar a cadeia e virar estudante de direito
Raimundo Freitas foi preso várias vezes por roubo e formação de quadrilha e chegou a pegar 44 anos de prisão. Este ano, começou a graduação no curso de direito com uma bolsa de estudos integral
atualizado
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Raimundo Freitas, 43 anos, nem se lembra quantas vezes foi preso. Fala baixo, manso. Menos por vergonha do passado que pela tranquilidade rara que conquistou a duras penas. A primeira vez que se encontrou com a lei foi aos 14 anos. Passou parte da vida preso, a outra cometendo crimes.
Até que a vida foi dando suas viradas. Hoje, já não dorme mais atrás das grades — paga os últimos anos de pena em regime domiciliar. Passa as manhãs e tardes como “faz-tudo” na sede da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap). Pela noite, desde fevereiro, se dedica à faculdade de direito. Raimundo e a lei agora jogam do mesmo lado.
Ele nasceu em Manaus, palco dos seus primeiros erros, ainda menino. “Minha infância foi como a de toda criança que nasce no subúrbio, onde tem uma boca de fumo em cada esquina”, conta. Começou como aviãozinho, levando e trazendo droga. Dali a pouco estava cometendo pequenos furtos, em mercados e lanchonetes, para bancar o vício. Usou “todo tipo de droga”, menos heroína, ele diz. “Ia preso e logo saía”, lembra. Mal sabe quantas vezes. Quando fez 18 anos, “caiu no sistema” – o carcerário.
De primeira, foram dois anos preso, para depois voltar ao crime. Cheio de Manaus, subiu num ônibus sem muito destino nem propósito. Foi primeiro para Goiás. De lá, veio parar em Samambaia. Não tinha ninguém aqui. Nem família, nem amigo, nem emprego. Os pequenos furtos evoluíram a crimes a mão armada. Encontrou o sistema de novo, dessa vez por roubo e formação de quadrilha.
Lá era o dia inteiro de cabeça baixa. ‘Sim senhor’ e ‘não senhor’. O espaço é pequeno, a cabeça é pequena, às vezes você sorri para as pessoas, mas por dentro está cheio de ódio. A mente vai fechando.
Raimundo Freitas
Descartado
Foi num desses crimes que ganhou as quatro marcas de bala que hoje guarda como lembrança de outra vida. Foi para a “desova”. “Quando a polícia não aguenta mais te ver, ela te descarta”. Quer dizer, ela extermina. Ele tinha acabado de fazer um assalto, os companheiros foram para casa, guardou as armas, sentou em um boteco sozinho e ascendeu um baseado para relaxar.
Não demorou, a polícia dobrou a esquina. Encostou o carro e pediu que ele entrasse no porta-malas. Lhe tirou um relógio e o dinheiro. “Pensei que eles só iam me assaltar e me deixar ir. Mas quando abriram o porta-malas, vi que era um lugar escuro. Me jogaram no chão e consegui ver a arma apontada para a minha testa”. Raimundo usou o braço para se proteger e uma das balas entrou por ali. A outra, atravessou a bochecha e ficou alojada na nuca. “Eu estava todo ensanguentado. Ou me fingia de morto, ou dava o fora dali”. Escolheu a segunda opção. Saiu correndo, pulando muros, telhas, levou mais dois tiros. Nem isso foi suficiente para lhe convencer, na época, de que o crime não compensava.
Nas temporadas esporádicas de liberdade, ele até tentou trocar de rumo, arrumar emprego. Sem estudo e nem experiência e com o “sistema” no currículo, no entanto, só achou portas fechadas. “A sociedade não dá oportunidade. Às vezes o preso quer mudar de vida, mas não tem vaga de trabalho. Aí ele vai reincidir no crime”, conclui. “O crime para mim sempre foi necessidade. Não luxo. Quando a necessidade bate…”
Ao todo, foram 4.380 dias dormindo e acordando na cadeia – 12 anos. A última vez que foi preso foi em 2008. De cabeça baixa, passou a levantar os olhos para observar os colegas que participavam de cultos evangélicos na prisão. Achou bonito os cantos, as orações. “Caiu em si”, ele acredita.
Não morri por ser esperto, foi por misericórdia de Deus mesmo.
Raimundo Freitas
A religião ascendeu em Raimundo uma luz num túnel que ele mal enxergava. Até então, não havia futuro nem outra vida que não um eterno ir e vir do crime para a cadeia. “Eu via os colegas fumando um baseado ali e ficava com vergonha de levar a Bíblia debaixo do braço. Eles riam, diziam que não ia durar. Eu dizia ‘Não, pô. Mudei mesmo. Não quero mais essa vida para mim, não’. Pedi a Deus para que eu não tivesse mais vergonha de carregar a Bíblia. Queria estudar de onde eu vim, para onde eu vou”.
Na mesma época, voltou a estudar. Começou da quarta série do ensino fundamental, lá mesmo, dentro do “sistema”. Em 2010, quando concluiu o ensino médio, prestou a prova do Enem, com boa pontuação. Quando conseguiu a progressão de pena, do fechado para o semiaberto e depois para o domiciliar, foi procurar emprego. Chegou a ser selecionado para duas vagas. Prestes a assumir o posto, no entanto, deu de cara com a porta. O motivo: ele ainda tinha pendências com a Justiça, pediram que voltasse quando quitasse a pena.
Depois disso, passou a trabalhar na Funap. A fundação tem convênios com órgãos do GDF e aloca presos – os interessados preenchem uma ficha e passam por uma seleção – em serviços que vão de pintura de fachadas a manutenção de jardins, a depender da demanda. Hoje, são 871 pessoas na lista de espera. O convênio com uma faculdade é que é novidade.
A primeira seleção, com o Instituto Brasiliense de Direito Público, foi no ano passado. Eram cinco vagas para uma bolsa integral e 56 candidatos. Além do ensino médico completo, para concorrer os presos precisavam ter cumprido três quartos da pena e ter bom comportamento. O direito nunca foi exatamente um sonho na vida de Raimundo. Ele nunca teve muitos sonhos, na verdade.
Eu imaginava que ia tombar na vida, no crime. Não tinha planos, não tinha nada.
Raimundo Freitas
Quando surgiu a oportunidade do diploma, ele não teve dúvidas de que a agarraria. Ser aprovado, nas palavras dele, foi como ganhar “visão panorâmica” da vida. “Foi inacreditável. Uma pessoa que passou por tudo o que eu passei… Eu abracei. Disse ‘é meu alvo’”.
As aulas começaram no final de fevereiro. As de ciência política são as favoritas. Até agora, o único contato que tinha tido com o mundo das leis foi com o Código Penal, com o qual, segundo ele, todo preso pega alguma afinidade, para cuidar da própria pena na cadeia. Fazem pedidos em papéis de pão ou papel branco. Foi assim que ele conseguiu uma comutação da sua pena, e reduziu um quarto do tempo da punição por bom comportamento.
Raimundo ainda deve cinco anos e três meses, mas espera conseguir o perdão da Justiça antes disso. O que ele lamenta é não conseguir o perdão daqueles que “fez sofrer” quando estava no crime. Pai de duas filhas – uma de 10 anos, nascida no sistema, e uma de 2 anos –, ele se esforça em mostrar para elas o caminho oposto ao que escolheu quando era mais novo. Faz 24 anos que não vê a mãe que ficou em Manaus, desde que saiu de lá. Aqui, valoriza a família. “Minha esposa é uma amiga, uma guerreira, companheira. Ela acreditou que eu podia mudar”.
Mais que leis e artigos, Raimundo aprendeu a sonhar. Além do diploma e de uma vida melhor para ele e para a família, ele quer escrever um livro sobre a sua vida, quem sabe fazer um documentário. Hoje, de vez em quando se reúne com outros ex-presidiários em igrejas, cada um conta sua história e como foi parar ali. Nos encontros, ele toca violão. A música preferia é a “Galhos secos”, da banda gospel Catedral: “Nos galhos secos de uma árvore qualquer/ Onde ninguém jamais pudesse imaginar/ O Criador vê uma flor a brotar”.