Antes de partir. Por que você precisa pensar em como deseja morrer
Um testamento vital pode garantir que preferências do pacientes sobre tratamentos sejam respeitadas nos momentos finais da vida
atualizado
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Ninguém fala muito sobre ela. Quando o assunto surge no almoço de família ou na notícia de jornal, muda-se de canal, troca-se de conversa. A morte é a única certeza que se tem na vida, dizem. Tão certo quanto sua chegada é o tabu que a envolve.
Quando ela aparece, quase sempre soa precoce, como uma visita indesejada que bate à porta sem avisar. Mas é preciso arrumar a casa para recebê-la. Ajustar ponteiros, preparar um bom café, lhe oferecer um assento no sofá. Ao fim do papo, registrar tudo em um testamento vital. É possível escolher a melhor forma de morrer.
Já faz cinco anos que o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução regulamentando o documento, que nada mais é do que a voz do paciente diante da iminência da morte em casos em que, por doença grave ou terminal, ele já não puder mais falar por si.
As escolhas podem incluir a negativa de uma traqueostomia quando os pulmões falharem, o prolongamento artificial da vida por apetrechos tecnológicos ou a recusa de ressuscitamento em caso de parada cardíaca.
Mas, por tabu ou falta de conhecimento, no entanto, pouca gente antecipa suas diretivas de morte. Registradas em cartório, segundo o Colégio Notarial do Brasil, foram apenas 672 no ano passado em todo o país. O documento não precisa de registro oficial – basta que seja anotado em prontuário médico para que seja cumprido -, mas os números ainda são considerados baixos.
Não existe lei no Brasil que contemple as chamadas “Diretivas Voluntárias de Vontade”, nome que se dá ao procedimento de manifestação das tais “preferências”.“E como tudo o que a lei não proíbe é permitido, temos registros de DAVs no Brasil pelo menos desde 2004”, comenta a advogada Luciana Dadalto, especialista em ciências da saúde e administradora de um site dedicado a divulgar e esclarecer dúvidas sobre o tema. “A resolução do CFM veio apenas para resolver uma questão ética entre os próprios médicos”, continua.
Na prática significa que, diante de uma situação em que técnica terapêutica alguma será capaz de reverter a situação terminal do paciente, o médico não pode desobedecer às preferências deixadas por ele previamente. Mesmo que a vontade da família seja diferente. O limite da DAV é justamente aquele que fere a obrigação médica de salvar a vida do paciente – mas só quando ela ainda é algo da qual ele tenha uma mínima chance de desfrutar.
Na saúde, e não na doença
Os especialistas defendem que o tabu da finitude deve ser quebrado não na doença, como geralmente acontece, mas justamente quando ela ainda parece distante. “Pensar em como queremos morrer faz sentido toda vez que pensamos no sofrimento como parte da vida”, defende a médica Milena Bezerra, da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.
Quando a gente encara a morte de alguém próximo e pensa ‘e se fosse comigo?’, é uma oportunidade de se construir uma nova cultura, onde as pessoas pensem sobre a morte.
Milena Bezerra, clínica geral com especialização em cuidados paliativos e membro da Academia Nacional de Cuidados Paliativos
Além disso, abraçar a certeza da morte com antecedência, dá a oportunidade de que o paciente possa pensar e repensar suas escolhas até a chegada dela. “Elas não são congeladas. Mudamos muito ao longo do nosso processo de envelhecimento. Por isso a importância de se conversar sobre isso sem um diagnóstico ou doença. ‘Se eu tiver um acidente automobilístico, será que eu quero doar meus órgãos? Manter minha vida de forma artificial?’”, provoca Milena.
As decisões podem ou não envolver a família, mas devem partir do paciente. Nos casos em que o bloqueio de se falar sobre o fim for mais forte, há ainda um segundo recurso: a escolha de um representante para tomar decisões por você. Uma coisa não exclui a outra – o testamento vital pode incluir um representante, para os casos em que a situação foge do que o documento contempla.
Por onde começar?
O incômodo não é exclusivo do paciente. Provocar alguém a pensar sobre a própria morte é um desafio também para médicos, segundo eles mesmos. Pensando em quebrar o gelo sobre o assunto, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia lançou este ano o “Cartas na mesa”, um jogo de baralho criado para iniciar o debate sobre as diretivas voluntárias quando o fim da vida se aproxima.
“Alguns pacientes já chegam com essa demanda (do testamento), porque vivenciaram situações difíceis com familiares ou amigos e não querem passar pelo mesmo”, comenta a geriatra e paliativista Ana Beatriz di Tommaso, da Comissão de Cuidados Paliativos da SBGG. “Mas o mais comum é que o profissional de saúde tome a iniciativa de começar o diálogo”, continua.
Por isso, a ideia é que o médico apresente as cartas e leve o paciente a fazer uma reflexão. O jogo traz ideias e conceitos desde preferências espirituais nos momentos finais, como a presença de líderes ou objetos religiosos, passando por animais de estimação, organização de finanças, comidas preferidas e doação de órgãos.
As cartas não são exatamente uma novidade – é uma criação do paliativista norte-americano Frank Ferris -, mas só agora elas foram traduzidas no Brasil. O baralho está à venda no site da SBGG.
“É uma tentativa de se quebrar alguns tabus. Se o paciente ainda tem autonomia, pode decidir o que quer no futuro. Por isso recomendamos que o testamento seja feito por qualquer pessoa, não apenas por idosos, antes de uma doença incapacitante. Mas é difícil para todo mundo”, pondera Ana Beatriz.