Uma dose de sonhos, por favor. Cuidados paliativos são negligenciados
Em 97% dos hospitais brasileiros, morre-se mais cedo e vive-se com dor. Cuidados paliativos poderiam mudar essa realidade
Leilane Menezes
atualizado
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O médico pergunta à plateia: “Você é contra milagres?”. O público tem especialistas em câncer e pacientes que convivem com a doença. Gente acostumada a se agarrar ao inexplicável.
“Se você não é contra milagres, isso é o suficiente para validar a esperança de quem acredita. Isso tem a ver com sonho”, diz o poético doutor. Ele defende que os pacientes precisam de mais do que remédios para se sentirem vivos: necessitam que seus milagres pessoais nunca sejam desacreditados ou ignorados.
O oncologista fala sobre esperança, cuidado, conforto, fé e respeito ao sagrado de cada um — que pode ser Deus ou o Corinthians, ele ressalta. Tudo isso faz diferença no tratamento médico. Expectativa real e esperança, ciência e crença, podem — e devem — conviver.
O dono do discurso empático é Daniel Neves Forte, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). As palavras dele humanizaram o 7º Fórum Nacional de Políticas de Saúde em Oncologia, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
Durante dois dias, discutiu-se o acesso a remédios de nomes assustadores de tão complicados, novidades em tecnologia, SUS, planos de saúde, burocracia, desigualdade social, morte e vida.
Daniel estava ali para falar sobre tratar o sofrimento de quem tem uma doença sem cura. “Cuidado paliativo não é só para quem está morrendo, é a competência profissional de cuidar de sofrimento”, explicou.
Equipes de cuidado paliativo não raramente realizam derradeiros sonhos dos pacientes, que podem ser gravar um CD, ver o filho, tomar um sorvete ou sentir a areia da praia tocar os pés pela última vez. Levam esperança e conforto aos espaços mais escuros e não permitem que ninguém parta sem dignidade. O Hospital de Apoio, em Brasília, tem um projeto que leva animais para visitar os doentes. É a importância desse tipo de profissionais que Daniel ressalta.
Há quem saia do curso de medicina sem saber tratar enjoos, dor de barriga e sensação de desamparo — e não é pouca gente, pelo que relata o especialista. Médicos encantam-se com o complexo, com o desafio, e muitas vezes deixam de lado algo simples, mas que seria muito importante para o paciente. “Como cuidar do medo? Da falta de ar? Da náusea? Lidar com os pacientes com empatia transforma radicalmente a saúde”, afirma, diante de uma plateia emocionada e hipnotizada.
Mas nem tudo é poesia. O doutor se apoia em ciência e números para defender seu ponto de vista. A Organização Mundial de Saúde (OMS) fez um levantamento sobre os países onde o cuidado paliativo funciona melhor. Argentina, Chile, Colômbia, Uganda e Mongólia estão entre os primeiros colocados. O Brasil aparece em antipenúltimo lugar.
No Brasil, há 127 equipes dessa especialidade. Somente 3% dos centros de saúde oferecem esse serviço. Nos outros 97%, morre-se mais cedo e vive-se com dor, já que 80% das pessoas com doenças incuráveis sentem muito desconforto físico.
Há quase 300 hospitais no país habilitados para tratar câncer. Ter cuidado paliativo é uma exigência para que eles possam funcionar, mas não há políticas que garantam o cumprimento dessa regra. Enquanto isso, nos EUA, 90% dos hospitais têm cuidados paliativos.
Os resultados de 43 estudos sobre cuidados paliativos foram cruzados e chegou-se à conclusão que eles reduzem os gastos com saúde e aumentam o tempo de vida dos pacientes. É possível ter cinco meses de sobrevida só com cuidados paliativos, afirma Daniel. “Os benefícios desse tipo de cuidado são baseados em evidências científicas, não é só uma ideia bonita”, ressalta.
Daniel acredita que a política mais importantes dentro do cuidado paliativo seria estimular que as pessoas — doentes ou não — fizessem uma Diretiva Antecipada de Vontade. Um texto no qual você diz como gostaria de ser tratado no pior cenário. Quer ser reanimado? Deve ser mantido vivo artificialmente?. “Nos EUA a diretiva diminuiu de 30% a 40% as internações nas UTIs. Isso resolveria a falta de leitos e traz a voz do paciente para o centro de tudo”, afirma o médico.
A fala de Daniel é familiar para Elfriede Galera, 61 anos, que também participava do debate. Há sete anos ela convive com um câncer de mama metastático (que se espalhou pelo corpo). Em 2010, foi desacreditada pelos médicos. Segue viva e, dentro do possível, bem, graças aos medicamentos e cuidados paliativos. Nesse período, ela viu os filhos formarem-se na faculdade e construiu com as próprias mãos um barco para navegar no litoral brasileiro (vontade que ainda espera realizar).
A ela foram receitadas sessões de quimioterapia e doses de sonhos. Também lhe foi apresentada a necessidade de fazer o testamento vital. O documento está pronto e tem cada desejo de Elfriede descrito. “Gostaria que a minha morte fosse um momento tão sagrado quanto o meu nascimento”, diz. Aprender a partir também faz parte do saber viver.