Que essas mortes não sejam em vão
A comunidade do Distrito Federal, incluindo seus operadores da segurança pública (bombeiros, policiais civis e militares), ainda se ressente das mortes trágicas do servidor do Senado Eli Roberto Chagas, em 2 de fevereiro, e do cabo da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) Renato Fernandes da Silva, no último dia 5. O primeiro foi […]
George Felipe de Lima Dantas
atualizado
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A comunidade do Distrito Federal, incluindo seus operadores da segurança pública (bombeiros, policiais civis e militares), ainda se ressente das mortes trágicas do servidor do Senado Eli Roberto Chagas, em 2 de fevereiro, e do cabo da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) Renato Fernandes da Silva, no último dia 5. O primeiro foi assassinado enquanto esperava os filhos na saída do colégio, onde teve o veículo roubado, enquanto o segundo morreu em decorrência do atendimento de uma ocorrência, também de roubo de veículo.
Essas duas mortes, igual a milhares de outras, parecem “cinicamente normais”, fruto da “naturalização/banalização” da violência que hoje contabiliza mais de 60 mil ocorrências letais no país. Vergonhoso “recorde mundial brasileiro” de número bruto de homicídios (em paridade relativa apenas com os números da Índia, país com uma população sete vezes maior que a do Brasil).
No entanto, essas mortes também podem ser um marco, quem sabe um grito de alerta, opondo uma espécie de “ideologia suicida coletiva” — de rendição para o crime e violência, que atingiu níveis insuportáveis. Ninguém mais está a salvo, independente do que faça (policiais inclusive), do dia, da hora ou do local onde estiver
Vários setores da sociedade brasileira clamam e reagem contra o que ficou estabelecido no país — uma espécie de ideologia que promove leniência com os agentes do crime e da desordem — inclusive no que tange a realidade da pena, incluindo saidões, indultos etc.
A cidadania acredita que isso termina produzindo até mesmo um incentivo implícito para a delinquência seguir com suas práticas. Para tal situação, já foi até mesmo cunhado o termo “coitadismo”, expressão que expressa uma permissiva desoneração moral dos praticantes de crimes, tendo por base dívidas sociais históricas com os menos favorecidos e que eventualmente passam a delinquir. Como se a exclusão social e a pobreza pudessem ser tidas como explicativas/justificativas para a delinquência — e não são.
Isso fica ainda mais grave diante da falência da prevenção primária por parte do poder público. E essa falência fica mais e melhor expressa na delinquência crescente de adolescentes e até mesmo crianças. Para bem ou para mal, é nesse contexto que alguns setores postulam a diminuição da idade de responsabilidade penal — clara demonstração de uma “ética da urgência”, “salve-se quem puder” ou “pânico moral”, na linguagem das ciência sociais.
Precariedade
Igualmente desastroso — e na outra possível extremidade preventiva do contínuo do sistema de Justiça criminal —, jaz um sistema prisional hoje tido, por sua precariedade e descontrole, como uma verdadeira “universidade do crime”. E, ao longo do país inteiro, o que se percebe é um sistema carcerário que chega mesmo ao extremo de ser desafiado (e muitas vezes neutralizado e superado) pelo crime organizado instalado dentro e fora das prisões.
A questão é bem mais complexa, mas, de ordinário, o sistema de segurança pública (podendo também ser chamado de sistema de justiça criminal) pode ser tido como caótico, na acepção de “cortado”, “rachado” ou separado das partes de um sistema, com essa desarticulação gerando finalmente desordem e confusão.
A polícia atua em meio ao caos da falência da prevenção primária em um extremo (emblematicamente incluindo a delinquência de crianças e adolescentes) e do desalento e desmoralização do sistema prisional na outra extremidade preventiva
Assim, enquanto o poder público parece ignorar esse caos sabidamente instalado — pela ausência de uma resposta minimamente proporcional ao status quo, fruto da falta de efetividade, ou mesmo total ausência de políticas públicas preventivas —, as polícias e demais instituições da segurança pública estão sob uma espécie de “cerco político-ideológico”. São permanentemente denunciadas e atacadas, como se a elas pudesse ser atribuída a quase falência da segurança pública — o que não é verdade.
E se a leniência e tolerância com o crime e os criminosos passou a ser algo supostamente “politicamente correto”, igualmente correta é a verdadeira campanha sistemática contra as instituições da segurança pública e seus prepostos, agentes da lei e da ordem — última linha de defesa do Estado democrático de direito. Ora são tidos como omissos, para logo em seguida serem acusados de violentos, arbitrários e “vocacionados” para o abuso de autoridade. Como se não fossem brasileiros como todos os demais.
Meses atrás, a segurança pública do Distrito Federal viveu uma crise (entre tantas outras politicamente produzidas), tão somente porque a polícia fez seu papel legítimo em uma situação de desordem, mas na qual foi tentado um “ganho político”, algo inaceitável até mesmo sob a perspectiva da própria comunidade e do Ministério Público do Distrito Federal.
Parte dessa situação foi explicitamente experimentada pela comunidade do Distrito Federal em 5 de fevereiro, mais especificamente ainda por seus operadores da segurança pública, quando da morte do cabo Renato Fernandes da Silva. Um noticiário local descreveu em detalhe, de maneira mordaz, a quantidade de recursos mobilizados no local da ocorrência que resultou na morte do policial, fazendo parecer injustificada tal mobilização, por se tratar de uma situação envolvendo a morte de “apenas um” policial. Causou revolta e comoção entre bombeiros e policiais distritais, bem como demais operadores da segurança pública. Os policiais estão fartos do clima de demonização que vem sendo estabelecido em relação a eles.
Essa demonização, incluindo a que vem sendo estabelecida contra a polícia no Brasil de hoje, é uma estratégia argumentativa de ação política e psicossocial presente em várias outras situações históricas. Retrata um determinado grupo de indivíduos como sendo “do mal” e, por isso mesmo, capazes de representar uma ameaça coletiva que justifique as mais diversas atrocidades.
Terrorismo moral
A contrapartida dessa espécie de terrorismo moral pode eventualmente justificar a “Justiça da turba”, como no caso de black blocs no Rio de Janeiro, ocasião em que um petardo dirigido deliberadamente contra policiais matou um cinegrafista. Nessa prática já clássica, gente supostamente normal é induzida finalmente a reagir contra um fictício inimigo comum — eles ou os outros — ainda que sob a influência de uma estratégia argumentativa invariavelmente falseada e desastrosa.
Desta vez, mal refeita da morte de Renato Fernandes da Silva e poucos dias depois do assassinato de Eli Roberto Chagas, a comunidade, parece, não recebeu como natural e trivial a banalização de mais uma morte — agora, de um policial. E isso — talvez, apenas talvez — traduza um ânimo da sociedade do Distrito Federal em não compactuar, pela frieza e indiferença, com alguma espécie de “ideologia suicida coletiva”. Afinal, ninguém está livre de também ser vítima de uma criminalidade violenta, cada dia e cada vez mais presente, intensa e aleatória no seu alcance.
É preciso repensar e reverter essa lógica.
George Felipe de Lima Dantas é doutor e mestre em Educação pela George Washington University (GWU), de Washington (EUA); ex-consultor e membro de missões internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA); e ex-assessor e consultor da Presidência da República, da Câmara dos Deputados e de outros órgãos federais