Crítica: exibido em Cannes, “Aquarius” é um filme seguro de si
O novo longa de Kleber Mendonça Filho é muitas coisas ao mesmo tempo, mas é mais interessante enquanto se mantém original, mais movido pelos personagens do que pela trama
atualizado
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Aplaudido por um bom tempo pelo público na sessão de gala, “Aquarius”, filme do brasileiro Kleber Mendonça Filho, tem grandes chances de faturar o prêmio máximo do Festival de Cannes, algo que não acontece desde a década de 1960, quando “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte ganhou a Palma de Ouro. Mesclando temas e complexidades brasileiras com um final bem no estilo do que Hollywood gosta, o filme com certeza será um sucesso entre o público internacional.
“Aquarius” é o nome do edifício onde mora Clara (Sônia Braga), viúva e sobrevivente de um câncer de mama. O local é onde ela passou a maior parte da vida e pretende ficar até morrer. Mas a marcha inexorável do tempo transformou o prédio numa relíquia, e uma construtora vem comprando todos os apartamentos para demolir Aquarius e construir uma torre nova no lugar. O único obstáculo é Clara. E ela não vai vender de jeito nenhum.
Cria-se então uma disputa. Clara não quer relegar sua história e suas memórias ao passado. A matéria ao seu redor contém marcas de sua existência, não só na forma de um corpo cicatrizado, mas também nos móveis, nos corredores e, principalmente, na enorme coleção de discos em vinil que pontua momentos importantes do filme. Em uma cena, Clara tenta encobrir o ritmo industrial da música vinda de uma festinha num apartamento da construtora com “Fat-Bottomed Girls”, da banda britânica Queen.Memórias e nostalgia
Logo no início, um momento incrível: nos anos 1980, a família de Clara comemora o aniversário de uma tia. Sentada no sofá, essa tia percorre a sala com os olhos e para num pequeno armário. Enquanto a família discursa e a homenageia, ela olha para o armário e pensa somente nos melhores momentos de sexo que teve em cima dele. Nossas memórias e nossa nostalgia pelo passado, um dos temas centrais do filme, muitas vezes remetem apenas a nós mesmos, como numa história que contamos numa mesa de jantar e ninguém ri além da gente.
A câmera de Mendonça também é nostálgica. Com uma linguagem de zoom, gruas e planos fixos, “Aquarius” não está interessado no frenesi e na velocidade da modernidade. É lindo de se ver, e completamente seguro de si. A fotografia mesmo já transforma o prédio e seus espaços em personagens da obra.
De fato, as divisões e barreiras impostas pela estrutura de um edifício parecem centrais para a obra desse diretor (seu filme anterior, “O Som ao Redor”, também se passava dentro de um condomínio). Seus roteiros não querem que as pessoas conversem e resolvam as diferenças entre si, mas que se retraiam cada vez mais ao próprio espaço físico. Ninguém quer ceder nunca.
Independência e resistência
Clara incorpora bastante essa inconsistência do brasileiro. Abastada e com patrimônio, ela não depende de ninguém e por isso consegue resistir. Ela é endinheirada, mas é uma artista, o que parece desculpar seu patrimônio (uma leve referência é feita ao fato de que quem realmente construiu o patrimônio familiar foi seu marido).
Clara tem empregada. Em dado momento, até se recorda de outra que roubava as joias de sua mãe. Mas, tudo bem, pois “nós os exploramos e eles roubam da gente”. As famílias dos outros moradores, que já venderam seus apartamentos mas ainda aguardam a construção do novo para receberem o dinheiro, são representadas em uma única cena.
Na linguagem de “Aquarius”, Clara está sempre certa, pois os vilões da história — Bomfim Engenharia e sua personificação, Diego (Humberto Carrão) — são, na verdade, caricaturas odiosas ao capitalismo desenfreado.
Clichês hollywoodianos
Nos 20 minutos finais, o roteiro deixa de ser sútil e se entrega a clichês hollywoodianos, com Clara se transformando numa versão de Erin Brockovich, aquela vivida por Julia Roberts, em 2001. Após um lindo filme de duas horas, começamos outro, de 20 minutos, que já vimos várias vezes. É um momento triunfal para Clara e todos nós que torcemos por ela. Porém, inconsistente.
“Aquarius” é muitas coisas ao mesmo tempo, mas é mais interessante enquanto se mantém original, mais movido pelos personagens do que pela trama.
Sônia Braga, atriz brasileira com uma carreira internacional desde os anos 1980, retorna às produções nacionais como se nunca tivesse partido. Com uma atuação incrível, certamente será consagrada em festivais mundo afora por esse trabalho. Morando há anos em Nova York, ela pode até ter sumido um pouco da consciência cultural dos brasileiros mais jovens. Seria muito bem-vinda de volta.
“Aquarius” é um dos melhores filmes do festival até agora e certamente sairá de Cannes com algum prêmio na mão. Pode ser, inclusive, o prêmio máximo. Seria um momento maravilhoso para o cinema brasileiro, que merece essa consagração.
Avaliação: Ótimo