Cannes: “Sieranevada”, de Cristi Puiu
Com quase três horas de duração, o filme é um retrato absolutamente caótico sobre avós, tios, irmãos e netos que, se não fossem família, nunca voltariam a se ver.
atualizado
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Cristi Puiu ficou famoso no cinema mundial ao lançar “A Morte do Sr. Lazarescu”, que apesar do título lúgubre, é uma comédia. Nela, o coitado do Sr. Lazarescu, sozinho em seu apartamento, passa mal e liga para uma ambulância. Quando a ambulância chega, acham o caso dele muito urgente e o levam para o hospital. Só que aí começa uma longa trajetória digna de Franz Kafka aonde um hospital fica mandando ele pro outro, um departamento fica direcionando ele pra outro, e enquanto isso a saúde de Lazarescu vai piorando.
Ao adotar o prisma da comédia para retratar esta história, Puiu virou o poeta do “rir pra não chorar”, e é com esse lema que Puiu escrever e dirigiu “Sieranevada”, primeiro filme em competição a ser exibido no Festival de Cannes neste ano. Só que desta vez o filme ataca a família em vez da burocracia.
Quarenta dias após a morte do patriarca Emil, sua família se encontra para uma missa e uma refeição in memoriam. Na verdade, eles tentam se encontrarem, pois com mais de uma dúzia de membros, incluindo filhos, netos, primos e seus respectivos, por vezes histéricos, dramáticos e embativos, a cerimônia e o jantar ficam sempre pra depois. O personagem principal é Lary (Mimi Branescu), filho do patriarca e, como bem cabe a um médico de carreira, a pessoa para onde todos se voltam para conseguirem um atestado de seus raciocínios.
Mas já na primeira cena do filme, entre Lary e sua esposa Laura (Catalina Moga), vemos que o pobre médico é tão perdido nas questões de relacionamento quanto o resto de sua família. Ele não consegue nem comprar a fantasia da Disney certa para sua filha usar na peça da escola, mesmo com uma especificação clara de sua esposa. Mas este começo é um simples prelúdio para o caos familiar que virá nas próximas duas horas e meia.
Dentro de um apartamento claustrofóbico, a câmera de Puiu e seu fotógrafo, Barbu Balasoiu, merece uma menção especial. Longas cenas de discussões ocorrem em tempo real. Personagens saem de um quarto e entram e outro, com a câmera logo atrás. Pode parecer simples, mas quem assistir verá uma coreografia falsamente naturalista–para atingir este efeito o elenco deve ter ensaiado exaustivamente.
Além de Lary e sua esposa, uma das netas (Ilona Brezoianu) carrega uma jovem bêbada e desacordada, que ninguém sabe quem é, para dentro de casa. Apesar do perigo desta estranha morrer ou no mínimo vomitar por todos os cantos da casa, a neta está determinada a ajudá-la e não aceita um não. Outros três membros discutem rispidamente conspirações do 11 de Setembro e o partido comunista da Romênia. Ainda tem a tia-avô, que numa das sequencias mais engraçadas do filme tem de confrontar a promiscuidade do marido (Sorin Medeleni). Ainda há tempo pro drama de Sebi (Marin Grigore), que tem de usar o terno do avô morto durante os ritos.
“Sieranevada” não é fácil de assistir por causa de sua imensa duração, ainda por cima sobre uma refeição entre membros complicadíssimos de uma só família. Se grande parte da população mundial faz de tudo para evitar um encontro com a própria família, qual o incentivo para passar esse tempo todo no evento de uma família de estranhos? O filme é bem-sucedido por que estes não são estranhos: a família romena, no fim das contas, tem mais similaridades do que diferenças com o resto das famílias da sociedade ocidental. Quem conseguir ficar até o final, certamente se sentirá fascinado com o espelho de nossas próprias casas.
Avaliação: Ótimo (4 Estrelas)