Cannes exibe “A Bela da Tarde”, clássico francês que completou 50 anos
Mesmo no Festival, durante as projeções, público presente dividem a atenção da tela com seus celulares
atualizado
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E, no final, foi Jean-Claude Carrière quem veio apresentar a versão restaurada de “A Bela da Tarde” em Cannes Classics, comemorando os 50 anos da obra-prima de Luis Buñuel. Caminhando com a ajuda de uma bengala, o escritor eletrizou a plateia que lotou a sala que se chama justamente Buñuel.
Grande contador de histórias, Carrière lembrou como os produtores, os irmãos Hakim, assediaram o grande diretor para que adaptasse o romance de Joseph Kessel. Buñuel hesitava, e não porque a adaptação fosse difícil, mas porque a fórmula de investigação psicológica do livro não lhe interessava.
“E ele achava que nós, dois homens, não saberíamos expressar o imaginário erótico das mulheres. Mas aceitou, e quando isso ocorreu frequentamos bordeis na França e na Espanha para entrevistar mulheres, e não apenas prostitutas. A sacada de dom Luis foi fazer dos desejos reprimidos de Sevérine a parte artificial do filme, e das fantasias de Belle de Jour a parte realista. E claro que o filme não seria o que é sem Catherine (Deneuve). Ela encarou a personagem sem pudor. Não há nada de explícito ou obsceno, mas a ideia da perversão atravessa o filme ”“A Bela da Tarde” deve reestrear na França em agosto. Se nenhum distribuidor brasileiro se interessar, Renata de Almeida deveria levar o filme para a Mostra. Mesmo quem acha que conhece o filme vai tomar um choque com sua riqueza e complexidade.
Homenagens
O 70º festival segue com suas homenagens. Ontem, reuniu grandes artistas que fizeram de Cannes a sua morada para uma foto de família. O presidente do júri deste ano, Pedro Almodóvar, e a eterna Bela da Tarde, Catherine Deneuve, ficaram lado a lado, rindo e contando histórias no ouvido um do outro. Um sonho de cinéfilo é que poderiam estar, ali, quem sabe, selando alguma futura colaboração.
Algo se passou na manhã desta terça-feira (23/5), quando a imprensa viu o novo longa da japonesa Naomi Kawase. “Hikari”. “Vers la Lumière, Em Direção à Luz”. Naomi parte de um fenômeno contemporâneo, a audiodescrição.
A protagonista é essa mulher, jovem, que faz a descrição de um filme mítico para deficientes visuais. Quantas palavras são necessárias para substituir uma imagem? E o problema não é só esse. Em plena civilização da imagem, as pessoas veem cada vez menos.
Estão dispersivas
Mesmo em Cannes, durante as projeções, jornalistas (críticos?) dividem a atenção da tela com seus celulares. A mulher guarda do passado o momento mágico em que, criança, o pai a levou ao alto da montanha para ver o entardecer. Talvez busque um homem maduro.
Encontra-o no fotógrafo que está perdendo a visão. Descobrem, ambos, que o essencial é invisível para os olhos. Não é banalidade de Pequeno Príncipe. Com Naomi Kawase a experiência é sempre densa. A mãe da protagonista está perdendo a memória. Some, e para encontrá-la é preciso atravessar esse espaço mítico do cinema de Naomi – a floresta das lamentações.
Comparativamente, e numa competição é impossível não comparar, o francês Rodin, de Jacques Doillon, foi decepcionante. Vincent Lindon não cria personagens. Assume-os com intensidade quase insuportável. O filme cobre os anos da relação com Camille Claudel e o período em que o ‘mestre’ é colocado em xeque pelo seu Balzac.
A obra que hoje é um marco da escultura moderna provocou manifestações de repúdio. O artista rejeitado. O homem que não sabe amar, exceto sua arte. Rodin não se casa com Rose, não reconhece o filho, distancia-se de Camille (mas segue sustentando-a em sua arte). É curioso, mas o Auguste Rodin de Doillon não difere muito do Jean-Luc Godard de Michel Hazanavicius em Redoutable.
O que há de errado com esses caras? Com os filmes? “Arte de velho”, alguém gritou em espanhol, no fim da projeção. Nem vaia nem aplauso. O oposto de A Bela da Tarde. E de Desejos Proibidos, de Max Ophuls, que também passou em Cannes Classics, como homenagem a Danielle Darrieux. Outro filme de gênio.