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Cannes: “Elle”, de Paul Verhoeven

Mesmo com menos sexo e menos sangue do que em seus filmes anteriores, Verhoeven produz aqui sua obra mais pesada, mais controversa… e mais engraçada

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Divulgação/Festival de Cannes
Elle
1 de 1 Elle - Foto: Divulgação/Festival de Cannes

Talvez as pessoas menos cinéfilas não reconheçam o nome Paul Verhoeven assim de cabeça, mas seus filmes são alguns dos mais marcantes das décadas de 80 e 90–“Robocop”, “O Vingador do Futuro”, “Instinto Selvagem” e “Showgirls”, ame-os ou odeie-os, serão eternas referências. Com uma carreira de direção com mais de 50 anos de estrada, seu novo filme, “Elle”, que estreia no Festival de Cannes não existe isoladamente, mas sim como uma espécie de apogeu de tudo o que já veio antes.

Não digo isso para insinuar que “Elle” é um filme derivativo ou óbvio, apenas para explicar que Verhoeven conseguiu fazer um filme tão ousado e único justamente por ter uma carreira inteira nas costas. Quanto ao público, não haverá aqui um meio-termo. Cada um vai amar “Elle” ou odiá-lo. Mas um quesito em que todos concordarão é que jamais viram um filme como esse.

A “Elle” do título é Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), executiva bem sucedida do ramo de videogames que, na primeira cena, é estuprada por um homem mascarado dentro de sua própria casa. Num primeiro plano, o filme é sobre a maneira inusitada em que Michèle lida com esse crime. Quando o criminoso foge ela se arruma, limpa a casa e sai para jantar com amigos. “Então.. fui estuprada”, ela anuncia logo antes de um garçom abrir uma garrafa de champagne. Todos se chocam com o tom banal que ela usa pra explicar o acontecimento.

Espectadores se chocarão também, pois Michèle recusa o rótulo de vítima e o filme segue a mesma linha. De situações perversas brotam tantos momentos cômicos, que ao saírem da sessão alguns críticos já o rotulavam como uma “comédia de estupro” (o verbo “rotular” não foi usada duas vezes por mera coincidência). “Elle” escapa de rótulos com destreza, mas mesmo assim alguns críticos parecem não entender o filme, o que é uma profunda ironia.

Ao mesmo tempo em que se nega à dar queixa na polícia, Michèle começa a procurar seu estuprador por conta própria. Nem ela e nem o diretor deixam claro se o estupro a traumatizou ou a excitou, mas sim que, para esta mulher específica, a linha entre estes dois sentimentos é complexa. Verhoeven admite que não filmou “Elle” nos Estados Unidos porque nenhuma atriz de Hollywood aceitaria fazer um papel como esse. Ainda bem que ele encontrou Isabelle Huppert que, após anos atuando dentro do sofrimento sadístico de Michael Haneke, está excelente num filme que é o exato oposto, uma espécie de perversão empoderadora.

Muito dessa complexidade vem da exploração das outras áreas de sua vida. No final das contas, o filme até funciona como uma parábola absurda sobre as relações entre homens e mulheres. Michèle é a pessoa mais forte e poderosa de sua realidade, especialmente em relação aos homens. Seu ex-marido é um escritor fracassada que aceita o desprezo com a qual ela lhe trata. Seu filho é um pau-mandado da namorada grávida, embora isto seja um grande empecilho para sua vida. Sua mãe pretende casar com um gigolô. Seu pai foi um serial killer, já preso, famoso na França. Seus funcionários a temem, e um que torna seu desprezo pela chefe explícito é rapidamente subjugado. Quando ela assiste uma cena do jogo que está produzindo, aonde um ogro medieval estupra uma princesa, Michèle comenta que os gritos orgásticos da vítima não estão altos o suficiente.

Em um mundo aonde são os homens que abusam de suas mulheres, talvez a provocação mais interessante de “Elle” é mostrar uma mulher que abusa de seus homens. Verhoeven não deixa nenhum tabu de lado, e por isso o filme é sua obra-prima.

Avaliação: Excelente (5 estrelas)

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