Cannes: “American Honey”, de Andrea Arnold
Filmando em seu estilo documental, Arnold, apesar de ser europeia, consegue retratar um lado americano que ninguém vê
atualizado
Compartilhar notícia
“American Honey” começa dentro de um container de lixo, aonde Star (Sasha Lane) tenta achar comida com duas crianças pequenas. Mas não se tratam de mendigos, pois eles tem casa e pais. Eles são, na verdade, pessoas à beira da pobreza total, uma categoria crescente na sociedade americana após a crise economica de 2008. A maioria da população americana não é a que vemos nos filmes e televisões, que habitam as metrópoles das costas leste e oeste, mas sim os milhões situados no meio, na vasta planície americana ocupada por plantações, lojas da Walmart e restaurantes de fastfood.
É justamente num WalMart que Star conhece um grupo de arruaceiros livres, leves e soltos. Como uma matilha de hooligans eles cantam e dançam pela loja ao som de “We Found Love”, faixa de eletro-pop de Rihanna e o DJ britânico Calvin Harris, cuja letra até revela mais do que devia no momento em que Star troca olhares com o líder da trupe, Jake (Shia LaBeouf). Todos que escreverem sobre este filme mencionarão a música e este momento, dirigido com tanto impacto que até torcemos por ela quando Star abandona as duas crianças com os pais adultos que não as querem e decide fugir.
Este ponto de partida para Star é uma síntese perfeita da esquizofrenia adolescente. Confrontada entre uma vida doméstica aonde ela tem de ser mais responsável que os adultos e a última chance de exploração e diversão que ela terá na vida, ela decide ser egoísta e se colocar em primeiro lugar. Com mochila nas costas ela entra para esta trupe de adolescentes, que atravessa o país vendendo assinaturas de revistas de porta-em-porta. É um trambique, claro, em que Star, Jake e os outros adolescentes inventam todo tipo de mentira para conseguirem convencer suas vítimas a comprarem seu produto.
“American Honey” é excelente enquanto road movie e crítica capitalista, dois gêneros excepcionalmente americanos. No país em que todos são encorajados a ganhar dinheiro e ficar rico, os personagens do filme são explorados para trabalhar durante o dia e aproveitam sua liberdade noturna para fazer a festa. A “dona” do grupo, que mais age como cafetã do que empresária, é Krystal (vivida por Riley Keough, neta do ícone americano Elvis Presley), e seu olhar amedrontador, especialmente quando vê Star junto com Jake, é capaz de causar um arrepio num réptil.
A fotografia, peculiar para um road movie americano, que sempre privilegiou os campos abertos do deserto, é quadrada e claustrofóbica, uma decisão que reenforça o fato de estarmos assistindo um filme sobre pessoas completamente aprisionadas pelos vários sistemas que as cercam, mesmo que se achem livre.
Livre mesmo é a narrativa, que não se prende a nenhuma convenção dramática, preferindo ir e vir entre a vida episódica destes nômades adolescentes. Pouco se aprende sobre o resto da equipe, pois a diretora prefere focar sempre no triângulo Star-Jake-Krystal. Mas quando aparecem, a equipe de coadjuvantes, a grande maioria formada por não profissionais, rouba a cena. Os principais, tanto Lane quanto LaBoeuf tem aqui o melhor papel de suas vidas, e não negam fogo.
O ponto fraco do filme é que Star, não importa o que aconteça, não consegue se desvencilhar de seu encanto por Jake. Aceitando todo tipo de abuso e objetificação, continua atrás dele como um cachorrinho pidão. Lhe falta poder decisório e uma voz ativa. A liberdade da qual ela e os outros tanto se vangloriam nunca aparece, restando apenas um conformismo não dito. Com quase três horas de duração, Arnold conseguiria fazer um filme melhor arrancando-lhe meia hora. Provavelmente dos constantes encontros com animais, metáfora mais do que batida sobre a ânsia pela liberdade.
Ainda assim, “American Honey” merece ser visto como uma obra essencial para os Estados Unidos de hoje.
Avaliação: Ótimo (4 estrelas)