Indulto mais severo para presos vai inflamar colapso nas cadeias
Juristas avaliam que o endurecimento das regras de execução penal agravará a crise à medida em que presos souberem da perda de benefícios
atualizado
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Uma norma publicada pelo governo dias antes de explodir a maior crise do sistema penitenciário brasileiro injetará ainda mais combustível na já incendiária situação das prisões brasileiras. O poder de combustão da nova regra aumentará à medida que a comunidade carcerária tomar conhecimento dos efeitos do Decreto nº 8.940, de 22 de dezembro de 2016.
A concessão do benefício do indulto hoje está restrita aos presos com até 12 anos de condenação, mesmo nos casos em que não há crime contra a vida nem violência sexual.A iniciativa exclui, pelo menos, 15 possibilidades de indulto para os presos de menor potencial ofensivo, que não cometeram crimes hediondos nem contra a vida. O indulto consiste no perdão de parte da pena, desde que seja atendida uma série de requisitos. Entre eles, o bom comportamento, que agora deixa de fazer diferença para efeito da redução de pena.
A medida estreita a abrangência do decreto que prevê as regras de execução penal no Brasil. Até agora, não havia essa linha de corte dos 12 anos. Para serem alcançados pelo indulto, os detentos tinham de cumprir um quarto da pena, no caso de réus primários; ou um terço, se fossem reincidentes.
O decreto que endurece as normas para o cumprimento da pena é considerado o mais severo desde 1974 e despertou a preocupação de advogados, juristas, ministros, entidades de direitos humanos, professores universitários e estudiosos da segurança pública.
O Metrópoles ouviu 14 especialistas sobre o assunto e todos são unânimes ao dizer que a medida tende a aumentar a massa carcerária e agravar o colapso de um sistema já inflado.
Aliada à redução das possibilidades de indulto, a norma, elaborada pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e assinada pelo presidente Michel Temer (PMDB) em dezembro, ainda exclui as possibilidades de comutação — substituição de uma pena ou sentença mais grave por uma mais branda. Benefícios tradicionais de proteção a idosos, mulheres e àqueles que cumpriram longas temporadas na prisão também foram eliminados ou reduzidos.
63% acima da capacidade
Pesquisa do Ministério da Justiça divulgada em 2015 apontou que o Brasil tinha a quarta maior população carcerária do mundo, com 607.700 presos. Em 2016, essa massa aumentou para 645.857, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os apenados estão distribuídos em 2.766 unidades, que teriam acomodações para, no máximo, 393.953 pessoas — um déficit, portanto, de 251.904 vagas.
Com 64% a mais do que a capacidade dos estabelecimentos prisionais comporta, o decreto federal vai na contramão de uma política de destensionamento das cadeias. A partir das novas regras, a tendência é reter cada vez mais presos, mesmo aqueles que cometeram crimes menos graves e que, segundo as normas anteriores, já estariam aptos a voltar para o convívio em sociedade.
O poder público não tem o menor controle de quantos indultos e comutações são concedidos por ano. Esses dados não são compilados nem nas varas de execução penal, nem no Ministério da Justiça, nem no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em uma projeção aleatória, se 10% de uma população de quase 650 mil condenados tivessem direito ao indulto ou à comutação para sair da cadeia, significaria dizer que, ao final de um ano, o sistema teria 65 mil presos a menos — alguns desses cumprindo penas alternativas, revertidas em benefícios para a comunidade.
Novas regras
Para o coordenador do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do DF, Leonardo Moreira, o Decreto nº 8.940, que definiu as novas regras de execução penal, é o mais duro das últimas décadas. “As possibilidades de indulto foram reduzidas de 18 para três. Até nos casos de penas menores, como o furto, e quando não há grave ameaça, ficou muito mais difícil de o preso conseguir o indulto”, informa Moreira.
O benefício foi retirado até nos chamados casos humanitários, quando a liberdade é concedida a quem está muito doente e sem condições de se tratar na cadeia. Agora, será preciso cumprir parte da pena em regime fechado.
Leonardo Moreira avalia que a principal perda em consequência do novo decreto é a retirada da comutação do texto, ou seja, a possibilidade de redução da pena a ser cumprida em função do período de encarceramento ou pela espécie do crime cometido. Nesses casos, era exigido bom comportamento do apenado e o benefício estava condicionado à reincidência ou não do criminoso.
A comutação faz parte da ressocialização. Quando se perde a esperança de progredir a pena em tantos anos, pode-se gerar uma frustração em função da falta de perspectivas
Leonardo Moreira, coordenador do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do DF
Cartas dos presos
Segundo o defensor público, essa é uma preocupação constante dos presos. Para se ter uma ideia, em uma semana, ele recebeu 109 cartas de detentos questionando sobre a progressão de pena: “Geralmente, eles perguntam sobre os dois temas (comutação e indulto) para fazer as contas de quanto tempo levam até sair da cadeia”.
Para a integrante da Comissão Criminal da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção DF (OAB-DF) e coordenadora da Comissão da Mulher Encarcerada, Priscila Ferreira do Amaral, Temer piorou as condições dos presos. “Pode ser um motivo para novas rebeliões. Isso vai causar uma grande revolta na hora em que os presos começarem a perceber as mudanças”, alerta Priscila.
O estopim da maior e mais recente crise no sistema prisional brasileiro foi a disputa entre facções. A briga de grupos criminosos por poder no Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte produziu um saldo macabro de 134 pessoas aviltadas, degoladas e esquartejadas. A superlotação, nesse contexto, não foi a causa, mas tornou-se um ponto nevrálgico de um sistema altamente inflamado.
Bom comportamento
O bom comportamento era um dos requisitos da comutação. Se um réu primário havia sido condenado à detenção de oito anos, por exemplo, quando tivesse cumprido dois, teria uma diminuição de um quarto do castigo, o que resultaria em uma nova pena, agora de seis anos e meio. Essa possibilidade era requerida pelos presos e analisada recorrentemente pela Justiça havia décadas. No último decreto, no entanto, foi retirada.
O presidente da organização não governamental Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Cristiano Maronna, ressalta que o decreto não endurece as regras somente para presos que cometeram crimes graves e com penas mais altas. Atinge toda a comunidade carcerária.
“É o pior indulto das últimas décadas, o mais restritivo, reflete a decisão do atual governo de endurecer a execução penal”, diz. “Temos a quarta população prisional do mundo e a violência só aumenta, estamos no caminho errado. É preciso ter políticas de recuperação dos presos, de prevenção”, defende.
Lava Jato
Há um entendimento de juristas que já se debruçaram sobre o tema dando conta da relação entre o novo decreto e as condenações da Operação Lava Jato. Segundo especialistas no assunto, as novas regras foram editadas sob medida para garantir que os condenados por crimes de corrupção permaneçam mais tempo na cadeia.
“Para punir mais severamente uma dezena de corruptos da Lava Jato, se piora a situação de centenas de outros presos”, calcula um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consultado pelo Metrópoles.
Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, a extinção da comutação não é fator decisivo, mas pode contribuir para o agravamento da superlotação nos presídios. “O Ministério da Justiça se vê hoje sobre dois focos: o das políticas de direitos humanos e o de quem deseja o endurecimento das penas contra a impunidade”, analisa.
Segundo Mendes, antes mesmo da edição do novo decreto, a aplicação do indulto já precisava de ajustes no sentido de agilizar a concessão do benefício, uma das formas de desafogar o sistema. “Se o condenado tem o benefício mas ele não é implementado, a gente ocupa uma vaga no sistema com quem já poderia ter saído”, explica. Por isso, segundo o ministro, o Conselho Nacional de Justiça vem enfatizando a necessidade de criação das varas de execução eletrônica para dinamizar o processo.
Conta não fecha
Contra o entendimento da comunidade jurídica, o Ministério da Justiça disse que a possibilidade de crescimento da massa carcerária não existe. O ministro Alexandre de Moraes afirmou ao Metrópoles que as mudanças nas regras do indulto foram feitas para “impedir a soltura de presos por crimes mais graves antes do cumprimento de pelo menos metade da pena”.
Ele citou uma série de medidas que seriam realizadas em conjunto com o endurecimento das regras previstas no Decreto nº 8.940. Elas estariam no Plano Nacional de Segurança, que seria divulgado na última quarta-feira (18).
No entanto, devido a um impasse nas negociações com os estados, o lançamento do plano foi adiado. Os governadores pedem ao governo federal a criação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que vincule repasses aos estados para a segurança pública, nos mesmos moldes dos fundos que abastecem as áreas de saúde e educação. Até agora, não houve acordo.
Ainda entre as iniciativas do plano, estaria a ampliação do número de vagas nos presídios. No fim do ano passado, o governo federal transferiu R$ 1,2 bilhão do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para os fundos penitenciários estaduais.
Cada Estado recebeu R$ 47,7 milhões, sendo cerca de R$ 32 milhões para a construção de novos presídios e cerca de R$ 13 milhões para modernização e equipamentos. Todo esforço orçamentário, no entanto, foi sorvido sem que houvesse qualquer melhoria no sistema superlotado.
O governo promete injetar mais R$ 1,8 bilhão na criação de 20 mil a 25 mil novas vagas em cadeias. O presidente Michel Temer autorizou a construção de mais cinco presídios federais. Em um sistema cujo déficit é de 250 mil vagas, a medida cobriria apenas 10% do problema. Um sinal de que o governo não entende nem de estratégia, nem de conta.