Ceasa, a grande feira que vive de frutas, verdura e muita sujeira
Passar o dia no imenso espaço da feira mostra que para além das cores dos produtos, há muito a ser desbravado
atualizado
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Pois uma feirinha daquelas de rua já é uma confusão danada. Imagine você uma feira de 260 mil metros quadrados. Oito em ponto da manhã e o dia já vai longo entre os galpões do Centro de Abastecimento do Distrito Federal, o popular Ceasa.
Aos sábados, a feira do varejo, aberta ao público em geral, começa às cinco da matina. Em dias de semana, como esta quinta-feira, às cinco, os caminhões já engarrafam as vias internas do Ceasa. Os mais notívagos aparecem logo às duas, quando o movimento nos boxes começa a animar. A primeira leva de caminhões chega dos produtores e esvazia ali sua carga. A segunda leva é aquela que parte carregada e vai abastecendo mercados e restaurantes do Distrito Federal.
Nesse entra-e-sai de caminhões circulam de carretas até kombis, passando por milhares de carros, todos se amontoando para além das vagas estabelecidas em cada galpão, subindo em calçadas e canteiros, em filas duplas e triplas, como navios desgovernados no cais do porto. E assim acontece todos os dias, salvo domingos e feriados.
Das cinco da manhã às cinco da tarde, os boxes permanecem abertos e funcionando em variado grau de sofreguidão e alarido. O camarada que chegar por ali, de boa, se aventurando sozinho, às oito da manhã, crente que acordou cedo, pode farejar pelos caixotes, pelas gôndolas e pelo asfalto as marcas da noite virada.
Rumo ao galpão sem número
Certas normas não escritas do Ceasa precisam ser compreendidas de imediato pelo prezado forasteiro. Ao eventual visitante que chegar num boxe qualquer e se animar a comprar um quilo de tomate, uma dúzia de banana, um par de pepinos, será mandando plantar batatas.
Estes feirantes não têm meias palavras e não estão lá para te ouvir pedir um desconto na mandioquinha. Eles estão lá para negociar no atacado, caixas e caixas de frutas e verduras, carregadas aos arranques pelos estivadores do Ceasa puxando carrinhos, carregadas de um lado para o outro por empilhadeiras daquelas de aeroportos.
Portanto, quem estiver dando um perdido pelo Guará e não quiser voltar para casa com 100 quilos de cebola, pode fazer sua feira do dia, aquele varejo nosso tão habitual, apenas em um dos vários galpões do Ceasa. Não adianta perguntar o número desse específico galpão, que ninguém saberá te informar, embora oficialmente cada um desses espaços gigantescos receba seu número justamente para ser identificado. Em vez disso, pergunte apenas pela… Pedra do Produtor.
Sob esse nome quase mitológico, Pedra do Produtor, se encontra uma feira como aquelas de bairro. E se o teu supermercado ainda vende verduras de ontem, quando abre às oito da manhã, esse horário por ali já é a xepa. Só não te animes muito: o preço não chega a ser tão mais barato que os mercados.
Ao som daquele pregão de bolsa de valores, baixando o preço do rabanete e anunciando o fim do estoque de morango orgânico, o nem tão apressado consumidor vai acabar percebendo mosquinhas viajando insanas no intenso tráfego aéreo da região. De onde vêm? Para onde vão?
Com licença, caiu uma laranja
Seguir uma mosca é tarefa ingrata. Voam em círculos, as danadas, e de tão pequenas se perdem dos olhos numa simples pirueta. Mas se as frutas ali expostas na Pedra do Produtor são todas lindas e coradas e carnudas… O submundo do Ceasa revelará a origem de moscas, mosquinhas e moscões.
Basta dar um rolé entre um galpão e outro. No ponto exato onde os caminhões encostam nos boxes já é feito o descarte. As frutas que se estragam na viagem e desabonam a imagem geral do produto são dispensadas num tapa. E aquelas que caírem no chão, bem, paciência. Ninguém lá vai se dar ao trabalho de se abaixar, limpar uma laranja nas calças e devolvê-la ao caixote na companhia das demais 487 laranjas.
Fruta que cai no chão tem uma única serventia. Virar imundície e alastrar a inhaca quando uma roda de caminhão passa por cima. Já vistes uma melancia estourada no asfalto? Cenas fortes.
A sujeira, assim, se acumula ao longo da manhã por toda, toda parte. No asfalto entre os caminhões, nas caixas de mercadoria vencida jogadas nos cantos dos boxes e até nas calçadas, que afinal jogar porqueira na calçada é uma prática brasiliense para bem além dos muros do Ceasa. Por ironia, as várias caçambas de lixo que pontuam os estacionamentos se apresentam vazias enquanto a sujança prospera.
E quando o sol dá aquela esquentadinha maneira de novembro, o futum sobe gostoso até as narinas. Aí nossas amigas mosquinhas começam suas atividades.
Um pouco de ordem no caos
Nenhuma equipe de limpeza é flagrada em ação pela reportagem do Metrópoles nesta manhã de quinta-feira. Ninguém com esfregão, vassoura, sacos de lixo, nada disso. Apenas uma simpática e destemida senhora pode ser avistada, literalmente passando o rodo nas janelas do Mercado do Peixe de Brasília, numa cena que chega a ser quixotesca e mui comovente diante do lixão alheio.
Uma ilhota de varejo num oceano de atacado, o Mercado do Peixe de Brasília tem mesmo que prezar pela limpeza. Cheiro de peixe podre afastaria qualquer comprador. Ali perto, o Mercado Orgânico é outro pequeno recanto de gentileza e cuidado no varejo. Funciona de quinta a sábado, pela manhã, mas não chega a ser um encanto.
Suas gôndolas quase vazias, a oferta pequena, uma decepção. A moça do caixa parece compartilhar de tal sentimento e lamenta que tudo está quase sempre assim, meio devagar, meio paradão. Mas o mercadinho deixa uma garrafa térmica com cafezinho gentilmente à disposição da clientela.
“É proibido mijar nesta área”
Acredite, se quiser. Recentes expedições arqueológicas promovidas por antropólogos e jornalistas comprovam que o Ceasa já viveu dias melhores. Lá nos fundos do mercadão, não muito distante da fronteira murada com o Extra, foram encontradas ruínas de civilizações antepassadas, construções erguidas provavelmente por deuses viajantes espaciais.
Numa mesozóica parede ainda se lê: Área de Lazer B 14. A tinta permanece ali, mas todo o outrora lúdico espaço ao seu redor se desfez com a ação do tempo – e dos povos bárbaros. A área aparentemente contava com bancos de cimento, mas foram dilapidados, dinamitados, demolidos, restando hoje apenas suas bases de concreto, a brotarem inúteis do chão, sem propósito outro a não ser denunciar silenciosamente o descaso geral.
Uma churrasqueira também se faz adivinhar pelo que dela ali restou. E ainda manda lembranças um singelo comando em letras azuis: “É proibido mijar nesta área”. Mesmo naqueles áureos tempos em que vicejava a Área de Lazer B 14 já existia um porcalhão, imagine, mas ao menos a rapaziada tentava enquadrá-lo.
Hoje, sinceramente, se sujeito abrir a braguilha e se aliviar ali mesmo, desrespeitosamente aos pés da antiga churrasqueira, pouco provável que alguém dará escândalo. Da mesma maneira que ninguém, entre caminhoneiros e feirantes e consumidores parece se importar em manter o Ceasa limpo, ou mesmo reclamar por sair chutando restos de melancia e conviver com os pombos que se fartam da improvisada refeição.
Vovó já dizia: não esqueça de lavar bem frutas e verduras, tá?
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