Hannah Arendt ou da violência banal
A verdade é que sempre arrumamos uma razão para não dizer ao outro quando ele nos incomoda
atualizado
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Fui à festa de aniversário de uma pessoa que adoro e, pela primeira vez, ela juntou os amigos com o pessoal do trabalho. Na hora da contabilidade, apesar de ser hétero, a maioria era formada por gays e lésbicas. Mas, tudo bem, a galera é #heterofriendly!
A festa estava superlegal e o álcool corria solto. Lembrando que a bebida entra, a verdade sai e junto vêm uns demônios. A maioria dos amigos da firma foi embora cedo, deixando só um casal hétero e um rapaz já em estado bem alterado. Todo mundo devidamente calibrado, era hora de tocar nossas músicas: É o Tchan e pagode anos 1990, e já estávamos fazendo as coreografias pós terceira rodada de José Cuervo.
De repente, ouvi uma risadinha às minhas costas. Há anos eu não escutava aquele som, mas o conhecia bem. Olhei para trás só para confirmar. Era o que eu pensava. Risinho de deboche irritante, achando graça da livre expressão de um corpo que dança. Entre os curtos espaços de silêncio, soavam coisas como “ele mexe”, “requebra”, “rebola”, “parece via…”.
“Vejam como falam, porque eu não sou nem a Barbie Romero Brito pra ser tratada dessa forma!”, pensei em responder. Mas não sou de arranjar confusão. Calei!
Aquilo foi grudando nas minhas costas, pesando, até minhas pernas pararem de se mover e eu não conseguir mais dançar. Ficaram só sustentando o peso do meu corpo. Quando a música acabou, fui para um cantinho ficar conversando.
A cena se repetia cada vez que alguém começava a dançar. Continuaram falando e dava para ouvir. O terceiro a se juntar à roda só durou duas músicas e não foi para o canto. Foi direto embora.
O clima ficou pesado sem que a aniversariante percebesse. Então, desligaram o som para o “parabéns”. Quando o silêncio se fez, vozes alteradas encheram o ambiente. O homem que estava com a mulher fez uma piada idiota para a irmã da anfitriã, que estava com a esposa.
Ela não aguentou calada. Disse em alto e bom som que ele deveria prestar atenção n’onde estava, pois ali ele era minoria. Que pensasse bem no que dizia e que eles estavam agindo como babacas.
Na real
O “babaca” ficou estático. Nunca imaginou que a reação viria de uma mulher lésbica, pois os homens não haviam esboçado reação. Parece que ninguém nunca havia dito a ele que, agindo daquela forma, estava sendo desagradável. A verdade é que ele ficou muito envergonhado, percebeu que havia feito m*.
Corremos para cantar o parabéns e partir o bolo. Os desagradáveis saíram com largos sorrisos e tupperwares cheias. Parece que a mensagem foi bem dada e eles iriam pensar antes de revelar sua homo/lesbofobia.
Voltei para casa pensando: por que me calei? A verdade é que sempre arrumamos uma razão para não dizer ao outro quando ele nos incomoda.
Não mais me calarei, seja por que motivo for.