Deus participa efetiva e intimamente da vida psíquica da sociedade
Foi também no fim da vida que, quando questionado se acreditava em Deus, Jung respondeu “eu não preciso acreditar, eu sei”
atualizado
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Um dia desses, fui questionado por um leitor sobre citações sobre Deus que faço em meus textos. Alegaram que isso poderia diminuir a credibilidade dos escritos. Como se Deus não participasse efetiva e intimamente da vida psíquica.
Jung foi um profundo conhecedor das religiões, ocidentais e orientais, por compreender que nelas está a espinha dorsal das culturas e civilizações. Ao observá-las, percebeu um fator comum: a representação de um ser que centraliza e unifica todos os acontecimentos.
Da mesma forma, percebeu que existe um princípio de autorregulação da psique, que tende à unidade, à compensação e à harmonia – veja a semelhança: atributos semelhantes aos da divindade.
Jung chamou esse princípio de Self – ao mesmo tempo, o centro e a totalidade psíquica. É ele quem guarda o sentido maior da existência de cada ser e busca estratégias para realiza-lo.
Assim como ocorre nos mitos divinos, essa relação entre ego e Self acaba sendo sempre conturbada. Nem sempre o eu é capaz de compreender e submeter-se àquilo que a psique pede. Teimamos e, assim como um deus que não é cultuado, o Self se impõe. Ele tem um propósito para a existência e não medirá esforços para alcançá-lo.
Sintomas, boicotes e perdas – coisas que frustram muito a eterna expectativa de sucesso do ego – aparecem como estratégias psíquicas para a realização desse propósito maior. São correções de curso, para conter a prepotência e tirania egoica. Quando investigamos, percebemos que eles nunca estão descontextualizados, desprovidos de um significado maior.
O Self não age de forma impiedosa. É justamente o contrário: assim como as punições divinas, também se dão por misericórdia – para que o ego do sujeito possa compreender as próprias limitações e estar disponível a algo maior. E, assim, transcenda à vaidade e revele um legado, a contribuição que cada um de nós tem com o mundo.
Da mesma forma, a consonância entre ego e Self pode se revelar da forma mais benevolente e aprazível. Alertas contra ciladas, acesso a conteúdos profundos e pacificadores, atração de pessoas e oportunidades que facilitam nossa vida. A vida flui. Em troca, o Self pede aquilo que qualquer deus exige de seus fieis: fidelidade e a reverência do pequeno diante do imenso.
É isso que Jung atesta na abertura de sua autobiografia, quando diz “minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”. Foi também no fim da vida que, quando questionado se acreditava em Deus, ele respondeu “eu não preciso acreditar, eu sei.” Jung não foi quem gostaria, ele foi quem deveria ser. E esse é o nosso desafio a cada dia.
(continua na próxima quarta-feira).