Ferreira Gullar, o premiado poeta que não tinha medo de pensar
Morto no último domingo (4/12), o poeta faturou as principais premiações literárias do Brasil e gostava de opina sobre temas polêmicos
atualizado
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Absolutamente todo o mundo literário vai escrever sobre a morte, aos 86 anos, de Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira, São Luís, 10/09/1930 – Rio de Janeiro, 04/12/2016). E ainda será pouco, porque estamos diante de um daqueles momentos cujo real valor simbólico somente será percebido daqui a alguns anos. Sua morte nos obriga a procurar outro poeta para indicar como o maior poeta brasileiro vivo.Partiu para compor um panteão de cinco ou seis gigantes da poesia brasileira.
Como poeta, percorreu todos os campos possíveis: pré-concretismo, concretismo, neoconcretismo, experimentalismo, poesia social, poesia intimista, poesia engajada e até cordel. Escreveu ainda teatro, crítica de artes plásticas, ensaios, contos, biografia, infanto-juvenil, crônicas. É difícil compreender que tenha demorado tanto para entrar na Academia Brasileira de Letras — apenas em 2014, já aos 84 anos.
Pelo menos três de seus livros de poemas podem ser considerados marcos na poesia brasileira: “A Luta Corporal”, de 1954, em que lança as bases do que viria a ser o concretismo; “Poema Sujo”, de 1976, escrito no exílio, que pode ser considerado sua maturidade poética; e “Em Alguma Parte Alguma”, de 2010, em que recupera alguns dos temas e investigações de parte da sua obra, incluindo as peras e os galos, imagens sempre presentes em seus poemas, bem como os limites da linguagem. Os dois últimos, certamente, obras primas.
Não foi apenas a vaga na ABL que veio tardiamente. Os prêmios literários também só começaram a aparecer já no último período da vida. O primeiro Jabuti foi conquistado apenas aos 70 anos de idade, em 2000, com “Muitas Vozes”. Em 2005, ganhou o principal troféu da ABL, o Machado de Assis. Faturou ainda mais dois Jabutis: em 2007, com seu livro de crônicas; e 2011, novamente em poesia. Aos 80, ganhou o Camões de Literatura.
O reconhecimento popular também chegou apenas na maturidade plena, com as sucessivas reedições da coleção completa de poemas pela José Olympio, em 2013, e com a notoriedade de sua coluna na “Folha de S. Paulo”. Houve até uma aventura patrocinada por alguns amigos, que o inscreveram na competição pelo Prêmio Nobel, em 2002.E ele tinha consciência de sua plenitude. Disse à companheira, em seu leito de morte, que o deixasse partir, porque estava em paz e feliz.
Polêmicas
Gullar, além de autor excepcional, era um observador arguto e intelectual autônomo, sem medo da controvérsia, tampouco de expressar seus pensamentos e análises. Aliás, já há vinte anos, então com 66 anos, tinha chegado à conclusão de que era melhor falar o que pensava do que dourar a pílula. O pensamento está expresso no livro “Em busca do povo brasileiro”: “Nessa altura da vida, eu digo tudo que penso, as pessoas que julguem o que quiserem, estou que nem o Dr. Barbosa Lima Sobrinho. Eu não tenho 90 anos, mas já estou na (idade) de dizer tudo que penso e que se foda.”
Em razão de sua verve crítica, que não poupava ninguém, muitos admiradores de sua poesia e de seus anos de resistência contra a ditadura militar, quando foi preso e obrigado a exilar-se, passaram a considerá-lo um traidor do pensamento de esquerda.
A decepção só ocorreu porque esses admiradores o julgavam apenas como um comunista – o que realmente foi um dia -, mas ele era mais do que isso. Tratava-se de um pensador livre, sem nenhuma opinião pré-fabricada. Nunca teve medo de mudar de opinião, a partir da reflexão.
Como consolo para os decepcionados, vale a pena lembrar que Gullar não poupou ninguém em sua longa trajetória: os concretistas, o Partido Comunista, os escritores engajados, os escritores não engajados. Nem mesmo FHC, a quem ajudou a eleger em 1994, foi poupado. O presidente o retirou da Funarte, órgão que presidiu durante o Governo Itamar Franco, assim que assumiu. Gullar não tinha papas na língua.
O poeta teve uma breve passagem por Brasília, à frente da Secretaria de Cultura do DF, em 1961. Coincidência: o atual Secretário de Cultura, Guilherme Reis, até se parece fisicamente com ele. Outra coincidência: a Associação Nacional de Escritores (ANE) lança no próximo dia 15/12, às 19h30, um livro sobre escritores brasileiros nascidos nos anos 30. Ferreira Gullar é um dos homenageados. A ANE fica na 707/907 Sul.
Para finalizar, um poema de Boaventura de Sousa Santos, poeta e pensador português cujo último livro tem um quê de Ferreira Gullar:
Epigrama 79
fui comprar sapatos novos
para ver se mudava de rumo
escolhi
escolhi
escolhi
quando ao fim de alguns anos saí da sapataria
o rumo tinha mudado por si
sem necessidade de sapatos novos
voltei à sapataria para os devolver
levei anos a encontrá-la
tinha sido convertida num museu
o museu dos tempos da mudança de rumo
Boaventura de Sousa Santos, 139 Epigramas para sentimentalizar pedras (2015)